quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Em busca da Justiça - na Universidade e na Medicina

Fui o orador de minha turma, na cerimônia de colação de grau em Medicina, na Universidade Federal de Alagoas. Já se vão mais de vinte anos desde aquele 9 de julho de 1988, mas sinto que várias das idéias que expressei no discurso de formatura permanecem atuais:

(...) À medida que avançávamos no curso, fomos descobrindo, para nosso espanto e decepção, que Medicina não é sinônimo de Saúde. Pelo contrário, a Medicina mecanicista, tecnicista, mercantilista e ultra-sofisticada muitas vezes praticada atualmente tornou-se um empecilho à verdadeira melhoria das condições de saúde da população como um todo. Pois que Saúde pode ser considerada como o estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual. Não pode ser vista apenas como ausência de doença, lesão, debilidade ou deficiência.

Esta visão ampla e global da Saúde permite-nos compreender que ela está diretamente relacionada e é, na realidade, dependente de fatores e questões tais como salário real, qualidade de vida, nutrição, condições de habitação, saneamento básico, higiene, produção e distribuição de alimentos, tradições e costumes populares etc. Basta acrescentarmos que hoje, no Terceiro Mundo, a doença mais freqüente, mais indecente e que causa maior número de mortes é a fome. E é também a doença que mais facilmente poderia ser evitada, pois existe uma vacina altamente eficaz e simples: panela cheia todos os dias!

Percebemos, então, que os médicos deveriam estar plenamente engajados na discussão e solução dos problemas mais amplos da sociedade, e não apenas preocupados em diagnosticar doenças e medicar doentes. Afinal, se a Saúde depende de tantos fatores, por outro lado, é ela que viabiliza toda e qualquer atividade humana.

Hoje, nós médicos estamos sentados nos consultórios, nos hospitais e nos gabinetes burocráticos, aguardando passivamente que as pessoas adoeçam, para que então possamos intervir. Entretanto, não é este o nosso papel e nem é esta a nossa missão.

Não obstante, para nossa vergonha e para descrédito das instituições educacionais brasileiras, podemos afirmar que nos seis anos que passamos na Universidade, não houve “tempo”, “espaço” ou “abertura” para debater questões prementes, tais como a fome, os menores abandonados, o alcoolismo, a toxicomania, a prostituição, o aborto, a morte e tantas outras... Jamais tivemos a oportunidade de participar numa discussão na qual as causas e conseqüências desses fenômenos fossem abordadas em seus aspectos médicos, sociais, psicológicos, morais, históricos, políticos, legais e econômicos. Chegamos, então ao ponto de questionar: para que serve o Conhecimento? Para que serve a Universidade, se o conhecimento que ela transmite nos distancia e aliena da realidade em que vivemos?

A impressão que se tem é que a Universidade brasileira está situada não na Terra, mas em outro planeta, talvez Saturno, onde os anéis coloridos distraem e desviam a atenção dos problemas concretos que exigem solução imediata.

A Universidade precisa corrigir os seus rumos, reconsiderar tudo que tem feito até agora, sair da “torre de marfim” em que se isolou e olhar para si própria como um dos membros que compõe o organismo vivo da sociedade. Se nós, alunos e professores universitários, tivemos uma oportunidade melhor que a maioria de nossos concidadãos, é nosso dever inescapável oferecer uma parcela maior de trabalho para o bem-estar coletivo.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Globalizar a paz

(Artigo de autoria de FEIZI M. MILANI, publicado pelo Jornal do Brasil e diversos outros jornais, na passagem de ano 2001 - 2002)


Já globalizaram a miséria, a fome, a guerra e a exploração do homem pelo homem. As nefastas conseqüências aí estão, para quem quiser enxergar. Agora chegou o tempo de globalizarmos a solidariedade, a justiça e a ética. Sim, o maior desafio do século XXI é a globalização da paz! Há boas e más notícias em relação a este processo histórico que, mesmo desapercebido, já teve início. Comecemos pelas boas. Todos os conhecimentos, recursos, infra-estrutura e mecanismos necessários à globalização da paz já existem e estão disponíveis. Por exemplo, seria impossível pensar em paz mundial se não houvesse uma integração planetária, de modo que todos os povos soubessem e reconhecessem a existência dos demais. A interligação alcançou patamares jamais sonhados com a Internet, que é também um canal de universalização do conhecimento. Resta ainda o desafio da democratização desses meios e instrumentos, mas essa é uma questão muito mais moral de que econômica ou tecnológica.

Quanto aos recursos financeiros, também existem em quantidade suficiente para se implementar e disseminar as referidas tecnologias e conhecimentos em benefício da humanidade. Uma drástica redução no desperdício com o desenvolvimento de artefatos bélicos e a corrida armamentista propiciará o básico em termos de qualidade de vida a todos habitantes da Terra. Como dizia Mahatma Ghandi, há riqueza suficiente no mundo para satisfazer as necessidades de todos, mas não para saciar a ganância de alguns.

Para globalizar a paz é necessário que as nações criem mecanismos de diálogo, bem como de planejamento e atuação em conjunto. Desde 1945, a ONU tem feito um trabalho extraordinário. Não fosse a ONU e suas agências, o mundo seria bem diferente do que é hoje. Diferente para pior! A Assembléia Geral da ONU é, na prática, o parlamento mundial no qual conflitos são negociados e guerras foram evitadas. A Declaração dos Direitos do Homem vem elevando a humanidade a novos patamares de civilidade e cidadania. Avanços históricos em campos tão distintos como os direitos da mulher, o equilíbrio ecológico, a redução da mortalidade infantil, o combate ao racismo, a mobilização em prol da cultura de paz, o controle de epidemias e a assistência a refugiados têm uma relação direta com os esforços da ONU.

Constata-se que a evolução social, política e científica tornou realidade os instrumentos necessários a uma nova ordem mundial. Não a que anunciam os que detêm o poder, mas sim uma ordem baseada na justiça e no reconhecimento da unidade do gênero humano. Cabe então, o questionamento - o que falta para que essa nova realidade se concretize? Diversos pensadores e líderes afirmam que somente a evolução espiritual e moral permitirá a superação desse dilema.

Essa é, justamente, a má notícia. As conquistas da raça humana acima citadas são passos necessários, mas insuficientes para viabilizar a paz no mundo. Todas elas já fazem parte do cotidiano da sociedade, mas não resultaram no ''produto'' mais ansiado, a paz, porque esbarram numa paralisia da vontade. As pessoas, os grupos e os governos - todos sem exceção - dizem amar e desejar a paz. Ao mesmo tempo, se deixam levar pela falsa idéia de que a violência e a maldade são inerentes ao ser humano, contribuem para perpetuar preconceitos, buscam a riqueza e o poder a qualquer custo, desrespeitam os valores éticos fundamentais, se fazem indiferentes ao sofrimento alheio, compram armas e destroem a natureza. Enquanto essa contradição moral não for superada, continuaremos a viver na velha (des)ordem mundial.

Na verdade, a má notícia é também boa: basta mais um passo para efetivarmos a globalização da paz. Os demais requisitos já estão assegurados. O que falta é essa transformação espiritual e moral. Trata-se de passo grandioso, mas é um só. Ele pode e precisa ser conquistado no interior de cada coração, família, comunidade, grupo social, empresa, governo e nas inter-relações entre eles. Eis o desafio - a um só tempo, simples e gigantesco - do século que se iniciou a ferro e fogo, em 11 de setembro de 2001.


(Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/brasilia/2004/06/19/jorbrs20040619015.html)