(...) À medida que avançávamos no curso, fomos descobrindo, para nosso espanto e decepção, que Medicina não é sinônimo de Saúde. Pelo contrário, a Medicina mecanicista, tecnicista, mercantilista e ultra-sofisticada muitas vezes praticada atualmente tornou-se um empecilho à verdadeira melhoria das condições de saúde da população como um todo. Pois que Saúde pode ser considerada como o estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual. Não pode ser vista apenas como ausência de doença, lesão, debilidade ou deficiência.
Esta visão ampla e global da Saúde permite-nos compreender que ela está diretamente relacionada e é, na realidade, dependente de fatores e questões tais como salário real, qualidade de vida, nutrição, condições de habitação, saneamento básico, higiene, produção e distribuição de alimentos, tradições e costumes populares etc. Basta acrescentarmos que hoje, no Terceiro Mundo, a doença mais freqüente, mais indecente e que causa maior número de mortes é a fome. E é também a doença que mais facilmente poderia ser evitada, pois existe uma vacina altamente eficaz e simples: panela cheia todos os dias!
Percebemos, então, que os médicos deveriam estar plenamente engajados na discussão e solução dos problemas mais amplos da sociedade, e não apenas preocupados em diagnosticar doenças e medicar doentes. Afinal, se a Saúde depende de tantos fatores, por outro lado, é ela que viabiliza toda e qualquer atividade humana.
Hoje, nós médicos estamos sentados nos consultórios, nos hospitais e nos gabinetes burocráticos, aguardando passivamente que as pessoas adoeçam, para que então possamos intervir. Entretanto, não é este o nosso papel e nem é esta a nossa missão.
Não obstante, para nossa vergonha e para descrédito das instituições educacionais brasileiras, podemos afirmar que nos seis anos que passamos na Universidade, não houve “tempo”, “espaço” ou “abertura” para debater questões prementes, tais como a fome, os menores abandonados, o alcoolismo, a toxicomania, a prostituição, o aborto, a morte e tantas outras... Jamais tivemos a oportunidade de participar numa discussão na qual as causas e conseqüências desses fenômenos fossem abordadas em seus aspectos médicos, sociais, psicológicos, morais, históricos, políticos, legais e econômicos. Chegamos, então ao ponto de questionar: para que serve o Conhecimento? Para que serve a Universidade, se o conhecimento que ela transmite nos distancia e aliena da realidade em que vivemos?
A impressão que se tem é que a Universidade brasileira está situada não na Terra, mas em outro planeta, talvez Saturno, onde os anéis coloridos distraem e desviam a atenção dos problemas concretos que exigem solução imediata.
A Universidade precisa corrigir os seus rumos, reconsiderar tudo que tem feito até agora, sair da “torre de marfim” em que se isolou e olhar para si própria como um dos membros que compõe o organismo vivo da sociedade. Se nós, alunos e professores universitários, tivemos uma oportunidade melhor que a maioria de nossos concidadãos, é nosso dever inescapável oferecer uma parcela maior de trabalho para o bem-estar coletivo.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Em busca da Justiça - na Universidade e na Medicina
domingo, 11 de janeiro de 2009
Globalizar a paz
Já globalizaram a miséria, a fome, a guerra e a exploração do homem pelo homem. As nefastas conseqüências aí estão, para quem quiser enxergar. Agora chegou o tempo de globalizarmos a solidariedade, a justiça e a ética. Sim, o maior desafio do século XXI é a globalização da paz! Há boas e más notícias em relação a este processo histórico que, mesmo desapercebido, já teve início. Comecemos pelas boas. Todos os conhecimentos, recursos, infra-estrutura e mecanismos necessários à globalização da paz já existem e estão disponíveis. Por exemplo, seria impossível pensar em paz mundial se não houvesse uma integração planetária, de modo que todos os povos soubessem e reconhecessem a existência dos demais. A interligação alcançou patamares jamais sonhados com a Internet, que é também um canal de universalização do conhecimento. Resta ainda o desafio da democratização desses meios e instrumentos, mas essa é uma questão muito mais moral de que econômica ou tecnológica.
Quanto aos recursos financeiros, também existem em quantidade suficiente para se implementar e disseminar as referidas tecnologias e conhecimentos em benefício da humanidade. Uma drástica redução no desperdício com o desenvolvimento de artefatos bélicos e a corrida armamentista propiciará o básico em termos de qualidade de vida a todos habitantes da Terra. Como dizia Mahatma Ghandi, há riqueza suficiente no mundo para satisfazer as necessidades de todos, mas não para saciar a ganância de alguns.
Para globalizar a paz é necessário que as nações criem mecanismos de diálogo, bem como de planejamento e atuação em conjunto. Desde 1945, a ONU tem feito um trabalho extraordinário. Não fosse a ONU e suas agências, o mundo seria bem diferente do que é hoje. Diferente para pior! A Assembléia Geral da ONU é, na prática, o parlamento mundial no qual conflitos são negociados e guerras foram evitadas. A Declaração dos Direitos do Homem vem elevando a humanidade a novos patamares de civilidade e cidadania. Avanços históricos em campos tão distintos como os direitos da mulher, o equilíbrio ecológico, a redução da mortalidade infantil, o combate ao racismo, a mobilização em prol da cultura de paz, o controle de epidemias e a assistência a refugiados têm uma relação direta com os esforços da ONU.
Constata-se que a evolução social, política e científica tornou realidade os instrumentos necessários a uma nova ordem mundial. Não a que anunciam os que detêm o poder, mas sim uma ordem baseada na justiça e no reconhecimento da unidade do gênero humano. Cabe então, o questionamento - o que falta para que essa nova realidade se concretize? Diversos pensadores e líderes afirmam que somente a evolução espiritual e moral permitirá a superação desse dilema.
Essa é, justamente, a má notícia. As conquistas da raça humana acima citadas são passos necessários, mas insuficientes para viabilizar a paz no mundo. Todas elas já fazem parte do cotidiano da sociedade, mas não resultaram no ''produto'' mais ansiado, a paz, porque esbarram numa paralisia da vontade. As pessoas, os grupos e os governos - todos sem exceção - dizem amar e desejar a paz. Ao mesmo tempo, se deixam levar pela falsa idéia de que a violência e a maldade são inerentes ao ser humano, contribuem para perpetuar preconceitos, buscam a riqueza e o poder a qualquer custo, desrespeitam os valores éticos fundamentais, se fazem indiferentes ao sofrimento alheio, compram armas e destroem a natureza. Enquanto essa contradição moral não for superada, continuaremos a viver na velha (des)ordem mundial.
Na verdade, a má notícia é também boa: basta mais um passo para efetivarmos a globalização da paz. Os demais requisitos já estão assegurados. O que falta é essa transformação espiritual e moral. Trata-se de passo grandioso, mas é um só. Ele pode e precisa ser conquistado no interior de cada coração, família, comunidade, grupo social, empresa, governo e nas inter-relações entre eles. Eis o desafio - a um só tempo, simples e gigantesco - do século que se iniciou a ferro e fogo, em 11 de setembro de 2001.
(Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/brasilia/2004/06/19/jorbrs20040619015.html)
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
José e a Nova Ordem Mundial
Poema de autoria de FEIZI MILANI que busca homenagear, através de uma paráfrase, nosso poeta-maior Carlos Drummond de Andrade. Publicado pela Revista CEPA Cultural, nº 14, dez/91 – jan/92, pag. 16.E agora, José?
a ética acabou,
a ganância invadiu,
a justiça
agonizou,
a corrupção difundiu,
a fome agudizou,
a esperança
implodiu,
a violência explodiu ...
e agora?
E agora, José?
a crise aumentou,
o comunismo ruiu,
o muro desabou,
o capitalismo
faliu,
o apartheid fracassou,
a ditadura sumiu ...
e agora?
E agora, José?
a inflação voltou,
a recessão sacudiu,
o extermínio
escandalizou,
a dívida expandiu,
a AIDS disseminou ...
e agora?
E agora, José?
a juventude questionou,
o sistema naufragou,
a história acelerou,
o futuro
... ???
e agora?E agora, José?
Vai continuar aí parado,
feito um babaca,
esperando ... ?
esperando o que, José?
E se você
vencesse o seu próprio pessimismo, ceticismo, materialismo, fanatismo (e qualquer outro burrismo),
se você parasse de reclamar como um revoltado,
se você passasse a agir como um revolucionário,
se você visse todos os seres humanos como membros da mesma família,
se você compartilhasse o seu pão, tempo, alegria e conhecimento com o próximo,
... não seria o princípio de uma transformação ?
E agora, José ?
Vai continuar aí de braços cruzados,
feito um panaca,
observando ... ?
observando pra que, José ?
E se você desse o primeiro
passo, mudando a si mesmo,
se você buscasse um sentido maior para a sua vida,
se você pensasse como um cidadão do mundo,
se você amasse com mais amor, toda a humanidade,
se você decidisse ser um agente de transformação social,
se você ajudasse a construir uma nova Ordem Mundial,
... não seria o princípio de uma revolução ?
E agora, você?
até quando vai
continuar aí
alienado, paralisado, revoltado, espantado,
feito um José
impotente
incompetente
incoerente
insuficiente
feito um
espectador passivo
vendo o trem da História passar
sem nada fazer
sem
participar
sem contribuir
sem compreender
sem cooperar
sem
agir
sem ser tudo aquilo que você poderia vir-a-ser...?
Até quando, José ?
É agora, você !
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Cultura de Paz e Segurança Pública
Com certeza! Os cientistas de variados campos de estudo são praticamente unânimes em rejeitar a hipótese de que a violência é inerente ao ser humano. Apesar de ser falsa, essa premissa encontra-se presente na forma de muitos pensarem e, consequentemente, nas propostas e comentários que fazem. É preciso reafirmarmos que a violência, assim como a paz, são valores e comportamentos aprendidos pelo indivíduo e construídos pela sociedade.
- O que pode ser feito em relação à violência, que a cada dia toma dimensões cada vez maiores e mais assustadoras? As políticas convencionais de repressão podem resolver este problema?
Não, as políticas de repressão são absolutamente insuficientes para o enfrentamento à violência. Claro que medidas dessa natureza também se fazem necessárias, mas preocupa-me muito o fato de que, no Brasil, a maioria das propostas e discursos gira em torno de premissas repressivas. O que tem sido efetivamente realizado para alterar as múltiplas causas e fatores desencadeantes da violência? Muito pouco.
O discurso da Cultura de Paz é um novo paradigma que nos permite analisar a questão da violência por um prisma muito mais amplo e abrangente. Através dele, somos capazes de reconhecer que a paz precisa ser construída em diversas dimensões – a interna e pessoal, a interpessoal, a societal e a planetária. Essas dimensões são complementares; devem ser reconhecidas em conjunto. Um exemplo prático do que pode e precisa ser feito é a Educação para a Paz. Trata-se de um campo riquíssimo de experiências sociais e estratégias pedagógicas que podem ser aplicadas em famílias, escolas, empresas e comunidades, resultando na prevenção da violência.
- E o que é fundamental para se construir uma cultura de paz?
Primeiro, acreditar que a paz é possível. Ela é um anseio tão universal e permanente, de parte do ser humano, que só pode ser algo que está ao nosso alcance. Além de anseio, a paz é uma necessidade – dela depende a sobrevivência da vida na Terra. Segundo, é preciso compreender que transformar a atual cultura de violência numa cultura baseada na cooperação, diversidade, justiça e participação é, de fato, o maior desafio da História. Isso não será concretizado com ações pontuais, belos discursos ou aquilo que eu chamo de “oba-oba”. A questão é muito complexa.
Claro que toda pessoa pode fazer algo, pequeno e simples, como sua parcela de contribuição, mas repensar processos sociais e definir estratégias de mudança exige um razoável nível de capacitação e experiência. A paz precisa ser levada a sério, saindo das opiniões do “senso comum” e buscando-se o conhecimento e a competência. O terceiro passo é a mobilização – envolver cidadãos, famílias, grupos sociais, empresas privadas, ONG’s, escolas, religiões, mídia e governos num programa consistente e multi-estratégico de promoção da cultura de paz.
- No caso de nosso país, é possível dizer que os brasileiros estão preparados para esta mentalidade?
A Cultura de Paz não é um estado idealizado com o qual sonhamos, aguardando que ocorra espontaneamente ou num passe de mágica. Ela é uma construção, um processo, uma caminhada. Não há uma chegada, um ponto final, já que as capacidades humanas são infinitas e somos capazes de evoluir sempre. Portanto, o processo de promover a cultura de paz é, em si, o aprendizado e a meta. À medida em que cada um de nós revê seus comportamentos e relacões interpessoais, em que as organizações redefinem seus objetivos e métodos, em que mecanismos institucionais e políticas públicas são criadas – tudo isso com o objetivo comum de construir uma cultura de paz – já estaremos conquistando a paz.
O Brasil é um paradoxo – por um lado, somos provavelmente o país que melhor recebeu, até hoje, estrangeiros que vêm para cá, seja como imigrantes ou como turistas. Em linhas gerais, somos um povo alegre, criativo e solidário. Por outro lado, somos a sociedade como a maior concentração de riquezas do planeta, ou seja, somos profundamente injustos. E a injustiça é a maior barreira à paz, mas a maior parte de nossas elites finge ignorar isso. Temos também o racismo e o preconceito contra os pobres, ambos profundamente arraigados na cultura e nas instituições. Alcançamos taxas de homicídios escandalosas, denunciando que o caráter sagrado da vida humana não é reconhecido. Enfim, precisamos aproveitar os pontos fortes que possuímos coletivamente para, a partir deles, superar as nossas fraquezas.
- Acredita que as instituições do Terceiro Setor podem mudar a cara do Brasil e ajudar na construção de uma cultura de paz?
Cada organização do Terceiro Setor trabalha por uma causa – algumas lutam pelos direitos da mulher, ou pela educação das crianças, contra o racismo, ou pelo equilíbrio ecológico e assim por diante. No fundo, todas desejam mudar a sociedade para melhor. Tenho buscado demonstrar aos meus colegas do Terceiro Setor que a Cultura de Paz é o elo que interliga todas essas bandeiras. A cultura de paz pressupõe e exige as mudanças pelas quais anseia a maioria da humanidade. Assim sendo, creio que o dia em que cada organização carregar em uma mão a sua bandeira específica e na outra, a bandeira universal da Cultura de Paz, o processo de transformação social será acelerado.
- O senhor criou o termo “globalização da paz”. O que significa? Será que a humanidade está pronta para iniciar este processo?
Esse termo visa ressaltar o fato de que todos os conhecimentos, recursos, infra-estrutura e mecanismos necessários à globalização da paz já existem e estão disponíveis. O processo de globalização não pode limitar-se à dimensão econômica. É necessário que as nações e os povos do mundo avancem no intercâmbio científico e cultural, na cooperação social, na resolução pacífica de conflitos, na preservação da natureza. As pessoas, os grupos e os governos – todos sem exceção – dizem amar e desejar a paz. Ao mesmo tempo, se deixam levar pela falsa idéia de que a violência e a maldade são inerentes ao ser humano, contribuem para perpetuar preconceitos, buscam a riqueza e o poder a qualquer custo, desrespeitam os valores éticos fundamentais, se fazem indiferentes ao sofrimento alheio, compram armas e destroem a natureza. Enquanto essa contradição moral não for superada, continuaremos a viver na velha (des)ordem mundial. Esse é o passo que precisamos dar.
- Especialmente neste ano eleitoral, a educação volta a ter destaque em muitos discursos. Trabalhar pela educação é também fundamental para avançarmos na cultura da paz?
Certamente a educação é a estratégia mais importante nesse processo. Ao falar de educação, não me refiro apenas aos bancos escolares, nem somente às atividades direcionadas a crianças e jovens. Refiro-me a todos processos sociais e interações interpessoais nos quais seus participantes têm a chance de aprender algo, de desenvolver uma capacidade, de refletir sobre seus valores, de ampliar seus horizontes. Isso inclui o ambiente de trabalho, o lar, a mídia, a religião etc. Todos esses espaços são educativos, mesmo que não se dêem conta disso. O ser humano aprende durante toda a sua vida, não apenas na infância. A responsabilidade de educar e educar-se para a paz é, portanto, de cada um e de todos. Por outro lado, é inquestionável que a escola tem um papel muito especial e que as sementes de paz plantadas nos corações das crianças têm uma probabilidade maior de frutificar. Por esse motivo, devemos priorizar a capacitação de educadores e a formação das novas gerações.
Adaptação da entrevista concedida por FEIZI MILANI ao jornalista Marcelo Salgado, e publicada pelo “Essência Social – Jornal do Terceiro Setor”, da Fundação João Daudt D’Oliveira (Rio de janeiro) em seu número 13, ano II, páginas 4 e 5, sob o título "PAZ: O ELO ENTRE TODOS OS INTERESSES".
Os desafios do Brasil
A construção de uma cultura de paz no Brasil implica em grandes desafios. Desses, destaco quatro prioritários: o da cidadania, o da justiça social, o da educação e o dos valores morais. Essas transformações podem ser alcançadas, se forem assumidas pela sociedade como uma visão compartilhada de futuro.
O primeiro desafio é o exercício pleno e universal da cidadania e dos direitos humanos. Isso só será possível quando exercermos uma cidadania proativa, que defino como uma postura de vida do indivíduo e instituições caracterizada pelo exercício consciente de seus direitos e deveres, pela participação ativa nos processos de busca de melhorias coletivas, e pela responsabilidade para com tudo aquilo que afeta a sua vida e/ou as vidas de outras pessoas.
Decorre desse conceito a noção de que ser um cidadão de paz é muito mais do que não ser um indivíduo violento. Fazer o bem é algo infinitamente maior do que não fazer o mal. No que se refere à ação individual, o maior empecilho à paz no Brasil não é uma minoria que age de forma violenta ou injusta, mas sim a maioria silenciosa e desarticulada - seja por alienação, acomodação ou medo.
É preciso que aprendamos a ser cidadãos do mundo. Será impossível estabelecer a paz enquanto as pessoas estiverem classificando e dividindo o mundo entre “nós” e “os outros”. Nós - (quer seja) esta família, ou moradores desta rua, ou torcedores deste time, ou seguidores desta igreja, ou membros desta raça, ou cidadãos deste país etc. - em oposição aos outros, os que são diferentes. Essa separação é completamente falsa e ilusória. Ser diferente não comporta juízo de valor, portanto, não tem nenhuma relação com superioridade ou inferioridade. Essa compreensão nos faz aceitar o outro (por mais diferente que seja), respeitar as suas necessidades e direitos, e buscar os meios de estabelecer a verdadeira justiça. Exercer a cidadania mundial é compreender, praticar e promover a unidade do gênero humano. Unidade gera reciprocidade, justiça e liberdade; consequentemente, gera a paz.
Quanto ao segundo: justiça social, no Brasil, pressupõe e significa redução das desigualdades, em especial a econômica, a social, as que existem entre os sexos, entre as raças e, na aplicação da justiça. Essas cinco formas de opressão vem se perpetuando desde o início de nossa história e cultura. Apesar de alguns avanços, o caminho a percorrer é longo e árduo.
Em nenhum outro país do mundo as disparidades entre ricos e pobres são tão gritantes. O capitalismo praticado aqui é, via de regra, selvagem -- explorador do homem e destruidor da natureza. A maioria dos brasileiros vive em condições precárias e tem uma renda que mal lhes garante a sobrevivência. Dessa maioria, os mais marginalizados são os afrodescendentes, que ainda sofrem a imensa carga de racismo que existe numa nação que manteve e promoveu, por três séculos, a escravidão. Os marginalizados são também submetidos à exclusão moral, pois a eles é imputada a culpa pela violência, pelo atraso do país na economia mundial, por terem filhos demais e por deixarem seus filhos perambulando pelas ruas. As possibilidades de ascensão econômica são ínfimas os mecanismos instituídos com esse propósito ainda são incipientes e tímidos. Pelo contrário, verbas públicas são sistematicamente aplicadas em projetos da iniciativa privada, favorecendo os que já acumulam privilégios. A corrupção é outra forma brutal (mas invisível) de violência contra os menos favorecidos. Apesar da atuação do Ministério Público e da imprensa, a impunidade persiste como regra.
As desigualdades e a exclusão são tão violentas e persistentes em nosso país, que há o risco real de romper-se o tecido social. Para que não se chegue à guerra civil, faz-se mister a combinação de múltiplas estratégias – políticas públicas visando uma efetiva redistribuição de renda, a reforma agrária e o apoio ao pequeno produtor, a erradicação da miséria, ações afirmativas para os afrodescendentes, a melhoria da qualidade de vida nas cidades e bairros mais carentes, etc.
A educação, terceiro desafio aqui referido, desempenha papel crítico na construção de uma cultura de paz. O caminho por trilhar, nesse campo, é longo. É preciso garantir o acesso, a permanência e o sucesso de todas crianças e adolescentes à rede de ensino, e que a escola promova um aprendizado significativo, através do qual se possam construir valores coerentes com a cultura de paz. Para isto, o papel do professor precisa ser socialmente valorizado, sua auto-estima resgatada e a consciência das possibilidades educativas que dispõe, fortalecida, através de capacitação.
Entretanto, não se pode colocar nos ombros do sistema educacional a responsabilidade pela transformação social. Num país onde a violência atingiu níveis degradantes como o nosso, a Educação para a Paz não pode ser tratada apenas como uma questão interna do sistema de ensino, ou limitar-se sua aplicação à sala de aula, nem destinar-se exclusivamente a crianças e jovens. Precisa tornar-se uma responsabilidade pessoal e institucional de todos que compõe essa sociedade.
Há também que se desmistificar duas falácias insistentemente repetidas hoje: que as injustiças sócio-econômicas podem ser solucionadas por um ensino de qualidade; e que a melhor educação consiste em treinar o indivíduo para atender às demandas do mercado de trabalho. Injustiça se resolve com políticas públicas que promovam a eqüidade. O conhecimento técnico e as habilidades intelectuais, quando desenvolvidos sem a equivalente formação ética, geram monstros. A História está aí para comprovar. A educação precisa ser integral, visando o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, mentais, emocionais e espirituais do ser humano.
A incorporação e a aplicação de valores morais em todos os níveis de decisão e atuação é outra transformação que urge em nosso país. A ética não pode continuar a ser uma camada superficial de tinta, adicionada ao edifício social apenas para encobrir as falhas estruturais do projeto, ou torná-lo menos repugnante. Ela deve se tornar a primeira consideração, o fundamento e o eixo transversal de todos empreendimentos, principalmente nos campos da política, da ação governamental, do empresariado e da mídia. Esses setores têm uma responsabilidade especial, pois exercem forte influência na vida dos cidadãos, além do impacto moral e psicológico, cada vez que dão um mau exemplo ao restante da sociedade.
Para que isso seja possível, é preciso ressacralizar o mundo, salvando-o da unidimensionalidade materialista. Precisamos nos volver às tradições espirituais da humanidade, buscando nelas os princípios éticos universais e atemporais. Essa leitura transreligiosa é possível, porque todas religiões têm, na sua essência, os mesmos valores morais. Além de oferecerem inestimáveis conhecimentos nesse campo, as religiões geram no ser humano a motivação e a coragem para transformá-los em ação.
A construção da cultura de paz traz também um desafio epistemológico -- desenvolver e aplicar um paradigma que transcenda as barreiras entre ciência, filosofia e tradições espirituais, entre as disciplinas científicas, entre as religiões, entre o sujeito e a estrutura, entre o micro e o macro, entre o individual e o coletivo.
Promover a cultura de paz significa e pressupõe trabalhar de forma integrada em prol de mudanças ansiadas pela maioria da humanidade e dos brasileiros – justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, direitos humanos, equilíbrio ecológico, participação democrática e liberdade política. A cultura de paz é o elo que interliga e abrange todos esses ideais num único processo de transformação social. A jornada é gigantesca, mas ela se inicia quando damos o primeiro passo.
Texto de FEIZI MILANI.