Com certeza! Os cientistas de variados campos de estudo são praticamente unânimes em rejeitar a hipótese de que a violência é inerente ao ser humano. Apesar de ser falsa, essa premissa encontra-se presente na forma de muitos pensarem e, consequentemente, nas propostas e comentários que fazem. É preciso reafirmarmos que a violência, assim como a paz, são valores e comportamentos aprendidos pelo indivíduo e construídos pela sociedade.
- O que pode ser feito em relação à violência, que a cada dia toma dimensões cada vez maiores e mais assustadoras? As políticas convencionais de repressão podem resolver este problema?
Não, as políticas de repressão são absolutamente insuficientes para o enfrentamento à violência. Claro que medidas dessa natureza também se fazem necessárias, mas preocupa-me muito o fato de que, no Brasil, a maioria das propostas e discursos gira em torno de premissas repressivas. O que tem sido efetivamente realizado para alterar as múltiplas causas e fatores desencadeantes da violência? Muito pouco.
O discurso da Cultura de Paz é um novo paradigma que nos permite analisar a questão da violência por um prisma muito mais amplo e abrangente. Através dele, somos capazes de reconhecer que a paz precisa ser construída em diversas dimensões – a interna e pessoal, a interpessoal, a societal e a planetária. Essas dimensões são complementares; devem ser reconhecidas em conjunto. Um exemplo prático do que pode e precisa ser feito é a Educação para a Paz. Trata-se de um campo riquíssimo de experiências sociais e estratégias pedagógicas que podem ser aplicadas em famílias, escolas, empresas e comunidades, resultando na prevenção da violência.
- E o que é fundamental para se construir uma cultura de paz?
Primeiro, acreditar que a paz é possível. Ela é um anseio tão universal e permanente, de parte do ser humano, que só pode ser algo que está ao nosso alcance. Além de anseio, a paz é uma necessidade – dela depende a sobrevivência da vida na Terra. Segundo, é preciso compreender que transformar a atual cultura de violência numa cultura baseada na cooperação, diversidade, justiça e participação é, de fato, o maior desafio da História. Isso não será concretizado com ações pontuais, belos discursos ou aquilo que eu chamo de “oba-oba”. A questão é muito complexa.
Claro que toda pessoa pode fazer algo, pequeno e simples, como sua parcela de contribuição, mas repensar processos sociais e definir estratégias de mudança exige um razoável nível de capacitação e experiência. A paz precisa ser levada a sério, saindo das opiniões do “senso comum” e buscando-se o conhecimento e a competência. O terceiro passo é a mobilização – envolver cidadãos, famílias, grupos sociais, empresas privadas, ONG’s, escolas, religiões, mídia e governos num programa consistente e multi-estratégico de promoção da cultura de paz.
- No caso de nosso país, é possível dizer que os brasileiros estão preparados para esta mentalidade?
A Cultura de Paz não é um estado idealizado com o qual sonhamos, aguardando que ocorra espontaneamente ou num passe de mágica. Ela é uma construção, um processo, uma caminhada. Não há uma chegada, um ponto final, já que as capacidades humanas são infinitas e somos capazes de evoluir sempre. Portanto, o processo de promover a cultura de paz é, em si, o aprendizado e a meta. À medida em que cada um de nós revê seus comportamentos e relacões interpessoais, em que as organizações redefinem seus objetivos e métodos, em que mecanismos institucionais e políticas públicas são criadas – tudo isso com o objetivo comum de construir uma cultura de paz – já estaremos conquistando a paz.
O Brasil é um paradoxo – por um lado, somos provavelmente o país que melhor recebeu, até hoje, estrangeiros que vêm para cá, seja como imigrantes ou como turistas. Em linhas gerais, somos um povo alegre, criativo e solidário. Por outro lado, somos a sociedade como a maior concentração de riquezas do planeta, ou seja, somos profundamente injustos. E a injustiça é a maior barreira à paz, mas a maior parte de nossas elites finge ignorar isso. Temos também o racismo e o preconceito contra os pobres, ambos profundamente arraigados na cultura e nas instituições. Alcançamos taxas de homicídios escandalosas, denunciando que o caráter sagrado da vida humana não é reconhecido. Enfim, precisamos aproveitar os pontos fortes que possuímos coletivamente para, a partir deles, superar as nossas fraquezas.
- Acredita que as instituições do Terceiro Setor podem mudar a cara do Brasil e ajudar na construção de uma cultura de paz?
Cada organização do Terceiro Setor trabalha por uma causa – algumas lutam pelos direitos da mulher, ou pela educação das crianças, contra o racismo, ou pelo equilíbrio ecológico e assim por diante. No fundo, todas desejam mudar a sociedade para melhor. Tenho buscado demonstrar aos meus colegas do Terceiro Setor que a Cultura de Paz é o elo que interliga todas essas bandeiras. A cultura de paz pressupõe e exige as mudanças pelas quais anseia a maioria da humanidade. Assim sendo, creio que o dia em que cada organização carregar em uma mão a sua bandeira específica e na outra, a bandeira universal da Cultura de Paz, o processo de transformação social será acelerado.
- O senhor criou o termo “globalização da paz”. O que significa? Será que a humanidade está pronta para iniciar este processo?
Esse termo visa ressaltar o fato de que todos os conhecimentos, recursos, infra-estrutura e mecanismos necessários à globalização da paz já existem e estão disponíveis. O processo de globalização não pode limitar-se à dimensão econômica. É necessário que as nações e os povos do mundo avancem no intercâmbio científico e cultural, na cooperação social, na resolução pacífica de conflitos, na preservação da natureza. As pessoas, os grupos e os governos – todos sem exceção – dizem amar e desejar a paz. Ao mesmo tempo, se deixam levar pela falsa idéia de que a violência e a maldade são inerentes ao ser humano, contribuem para perpetuar preconceitos, buscam a riqueza e o poder a qualquer custo, desrespeitam os valores éticos fundamentais, se fazem indiferentes ao sofrimento alheio, compram armas e destroem a natureza. Enquanto essa contradição moral não for superada, continuaremos a viver na velha (des)ordem mundial. Esse é o passo que precisamos dar.
- Especialmente neste ano eleitoral, a educação volta a ter destaque em muitos discursos. Trabalhar pela educação é também fundamental para avançarmos na cultura da paz?
Certamente a educação é a estratégia mais importante nesse processo. Ao falar de educação, não me refiro apenas aos bancos escolares, nem somente às atividades direcionadas a crianças e jovens. Refiro-me a todos processos sociais e interações interpessoais nos quais seus participantes têm a chance de aprender algo, de desenvolver uma capacidade, de refletir sobre seus valores, de ampliar seus horizontes. Isso inclui o ambiente de trabalho, o lar, a mídia, a religião etc. Todos esses espaços são educativos, mesmo que não se dêem conta disso. O ser humano aprende durante toda a sua vida, não apenas na infância. A responsabilidade de educar e educar-se para a paz é, portanto, de cada um e de todos. Por outro lado, é inquestionável que a escola tem um papel muito especial e que as sementes de paz plantadas nos corações das crianças têm uma probabilidade maior de frutificar. Por esse motivo, devemos priorizar a capacitação de educadores e a formação das novas gerações.
Adaptação da entrevista concedida por FEIZI MILANI ao jornalista Marcelo Salgado, e publicada pelo “Essência Social – Jornal do Terceiro Setor”, da Fundação João Daudt D’Oliveira (Rio de janeiro) em seu número 13, ano II, páginas 4 e 5, sob o título "PAZ: O ELO ENTRE TODOS OS INTERESSES".
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