quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Os desafios do Brasil

A construção de uma cultura de paz no Brasil implica em grandes desafios. Desses, destaco quatro prioritários: o da cidadania, o da justiça social, o da educação e o dos valores morais. Essas transformações podem ser alcançadas, se forem assumidas pela sociedade como uma visão compartilhada de futuro.

O primeiro desafio é o exercício pleno e universal da cidadania e dos direitos humanos. Isso só será possível quando exercermos uma cidadania proativa, que defino como uma postura de vida do indivíduo e instituições caracterizada pelo exercício consciente de seus direitos e deveres, pela participação ativa nos processos de busca de melhorias coletivas, e pela responsabilidade para com tudo aquilo que afeta a sua vida e/ou as vidas de outras pessoas.

Decorre desse conceito a noção de que ser um cidadão de paz é muito mais do que não ser um indivíduo violento. Fazer o bem é algo infinitamente maior do que não fazer o mal. No que se refere à ação individual, o maior empecilho à paz no Brasil não é uma minoria que age de forma violenta ou injusta, mas sim a maioria silenciosa e desarticulada - seja por alienação, acomodação ou medo.

É preciso que aprendamos a ser cidadãos do mundo. Será impossível estabelecer a paz enquanto as pessoas estiverem classificando e dividindo o mundo entre “nós” e “os outros”. Nós - (quer seja) esta família, ou moradores desta rua, ou torcedores deste time, ou seguidores desta igreja, ou membros desta raça, ou cidadãos deste país etc. - em oposição aos outros, os que são diferentes. Essa separação é completamente falsa e ilusória. Ser diferente não comporta juízo de valor, portanto, não tem nenhuma relação com superioridade ou inferioridade. Essa compreensão nos faz aceitar o outro (por mais diferente que seja), respeitar as suas necessidades e direitos, e buscar os meios de estabelecer a verdadeira justiça. Exercer a cidadania mundial é compreender, praticar e promover a unidade do gênero humano. Unidade gera reciprocidade, justiça e liberdade; consequentemente, gera a paz.

Quanto ao segundo: justiça social, no Brasil, pressupõe e significa redução das desigualdades, em especial a econômica, a social, as que existem entre os sexos, entre as raças e, na aplicação da justiça. Essas cinco formas de opressão vem se perpetuando desde o início de nossa história e cultura. Apesar de alguns avanços, o caminho a percorrer é longo e árduo.

Em nenhum outro país do mundo as disparidades entre ricos e pobres são tão gritantes. O capitalismo praticado aqui é, via de regra, selvagem -- explorador do homem e destruidor da natureza. A maioria dos brasileiros vive em condições precárias e tem uma renda que mal lhes garante a sobrevivência. Dessa maioria, os mais marginalizados são os afrodescendentes, que ainda sofrem a imensa carga de racismo que existe numa nação que manteve e promoveu, por três séculos, a escravidão. Os marginalizados são também submetidos à exclusão moral, pois a eles é imputada a culpa pela violência, pelo atraso do país na economia mundial, por terem filhos demais e por deixarem seus filhos perambulando pelas ruas. As possibilidades de ascensão econômica são ínfimas os mecanismos instituídos com esse propósito ainda são incipientes e tímidos. Pelo contrário, verbas públicas são sistematicamente aplicadas em projetos da iniciativa privada, favorecendo os que já acumulam privilégios. A corrupção é outra forma brutal (mas invisível) de violência contra os menos favorecidos. Apesar da atuação do Ministério Público e da imprensa, a impunidade persiste como regra.

As desigualdades e a exclusão são tão violentas e persistentes em nosso país, que há o risco real de romper-se o tecido social. Para que não se chegue à guerra civil, faz-se mister a combinação de múltiplas estratégias – políticas públicas visando uma efetiva redistribuição de renda, a reforma agrária e o apoio ao pequeno produtor, a erradicação da miséria, ações afirmativas para os afrodescendentes, a melhoria da qualidade de vida nas cidades e bairros mais carentes, etc.

A educação, terceiro desafio aqui referido, desempenha papel crítico na construção de uma cultura de paz. O caminho por trilhar, nesse campo, é longo. É preciso garantir o acesso, a permanência e o sucesso de todas crianças e adolescentes à rede de ensino, e que a escola promova um aprendizado significativo, através do qual se possam construir valores coerentes com a cultura de paz. Para isto, o papel do professor precisa ser socialmente valorizado, sua auto-estima resgatada e a consciência das possibilidades educativas que dispõe, fortalecida, através de capacitação.

Entretanto, não se pode colocar nos ombros do sistema educacional a responsabilidade pela transformação social. Num país onde a violência atingiu níveis degradantes como o nosso, a Educação para a Paz não pode ser tratada apenas como uma questão interna do sistema de ensino, ou limitar-se sua aplicação à sala de aula, nem destinar-se exclusivamente a crianças e jovens. Precisa tornar-se uma responsabilidade pessoal e institucional de todos que compõe essa sociedade.

Há também que se desmistificar duas falácias insistentemente repetidas hoje: que as injustiças sócio-econômicas podem ser solucionadas por um ensino de qualidade; e que a melhor educação consiste em treinar o indivíduo para atender às demandas do mercado de trabalho. Injustiça se resolve com políticas públicas que promovam a eqüidade. O conhecimento técnico e as habilidades intelectuais, quando desenvolvidos sem a equivalente formação ética, geram monstros. A História está aí para comprovar. A educação precisa ser integral, visando o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, mentais, emocionais e espirituais do ser humano.

A incorporação e a aplicação de valores morais em todos os níveis de decisão e atuação é outra transformação que urge em nosso país. A ética não pode continuar a ser uma camada superficial de tinta, adicionada ao edifício social apenas para encobrir as falhas estruturais do projeto, ou torná-lo menos repugnante. Ela deve se tornar a primeira consideração, o fundamento e o eixo transversal de todos empreendimentos, principalmente nos campos da política, da ação governamental, do empresariado e da mídia. Esses setores têm uma responsabilidade especial, pois exercem forte influência na vida dos cidadãos, além do impacto moral e psicológico, cada vez que dão um mau exemplo ao restante da sociedade.

Para que isso seja possível, é preciso ressacralizar o mundo, salvando-o da unidimensionalidade materialista. Precisamos nos volver às tradições espirituais da humanidade, buscando nelas os princípios éticos universais e atemporais. Essa leitura transreligiosa é possível, porque todas religiões têm, na sua essência, os mesmos valores morais. Além de oferecerem inestimáveis conhecimentos nesse campo, as religiões geram no ser humano a motivação e a coragem para transformá-los em ação.

A construção da cultura de paz traz também um desafio epistemológico -- desenvolver e aplicar um paradigma que transcenda as barreiras entre ciência, filosofia e tradições espirituais, entre as disciplinas científicas, entre as religiões, entre o sujeito e a estrutura, entre o micro e o macro, entre o individual e o coletivo.

Promover a cultura de paz significa e pressupõe trabalhar de forma integrada em prol de mudanças ansiadas pela maioria da humanidade e dos brasileiros – justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, direitos humanos, equilíbrio ecológico, participação democrática e liberdade política. A cultura de paz é o elo que interliga e abrange todos esses ideais num único processo de transformação social. A jornada é gigantesca, mas ela se inicia quando damos o primeiro passo.

Texto de FEIZI MILANI.

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